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20) Desejo



Uma semana passou vertiginosamente sem que eu percebesse. Os dias corriam rápido demais desde aquele dia em que acordei na casa de Adriel e que ele declarou-se, desajeitado e confuso.

Levou-me para conhecer sua casa. A decoração era composta por móveis contemporâneos mesclados com uma ou outra peça mineira antiga. Pouco vidro e plástico, sem linhas retas, muitas curvas, criando um ambiente aconchegante e acolhedor.

Fiquei surpresa por encontrar alguns móveis clássicos do design mobiliário brasileiro, como a Mole de Sérgio Rodrigues e alguns exemplares dos Irmãos Campana, os gurus dos materiais inusitados. Como estudante de arte não apenas conhecia como acompanhava com devoção esta forma de arte. Comentei que dos móveis deles que admiro só faltou mesmo a poltrona de ursinhos de pelúcia que era minha paixão. Ele riu e disse que não combinava muito com sua reputação. Tive que concordar aos risos.

Não bastassem os móveis, a casa era repleta de arte, em sua maior parte contemporânea ou moderna e artesanatos que eram arte de tão perfeitos. Nos quadros parece que o único critério era o colorido e a vivacidade. Na sala imensa, com vários ambientes, uma parede inteira, de fora a fora, do chão ao teto de prateleiras com livros de literatura, arte, biografias, ficção e história. Em outro canto, uma TV imensa em frente a sofás macios e imensos. Dava vontade de pular em cima e dormir o dia inteiro neles. Ao lado da TV, o aparelho de som e uma coleção infinita de discos de música e cinema de todos os gêneros.

A arquitetura era estupenda, toda em madeira e alvenaria, com uma varanda gigantesca com piscina e vista para o mar. Poderia apostar que era tudo ecologicamente correto e nada parecia barato, o que me deixou levemente divertida. Jamais imaginaria um anjo endinheirado e amante do luxo. Quando comentei o que parecia ser um contra-senso, argumentou que o dinheiro somente tinha importância para os humanos, porque a forma de lidar com sua falta ou excesso era utilizada para nosso aprendizado e evolução, que para anjos era assunto irrelevante e não via sentido em se privar de conforto e prazer com objetos de arte, uma bela casa ou o que quer que deseje materialmente, já estando privado de muitos outros prazeres e confortos pelo simples fato de viver na terra como se fosse humano, não o sendo.

- Olhando por este lado... Até que faz sentido. – Tive que reconhecer. De qualquer forma, sendo coerente ou não, inegavelmente era a casa dos sonhos de qualquer humano.


Ele não me deixou ir embora antes do almoço, que foi soberbo. Tana ficou com um sorriso de orelha a orelha ao meu elogio e fui praticamente convocada para o jantar. Depois disto, tornou-se um hábito de todas as noites. Os almoços quase sempre eram na minha cabana. Tana estava dando-me aulas de culinária e Adriel fez jus à sua condição angelical ao servir de cobaia para minhas aventuras gastronômicas, sempre com a mesma expressão de prazer e felicidade, mesmo que a comida estivesse intragável até para meu paladar. Estava melhorando graças a seu incrível apoio moral.

Acordava cedo todos os dias, escuro ainda, para ver o nascer do sol com Adriel. Ele via, aliás. Eu via apenas ele enquanto o pintava. Era o momento predileto do dia porque podia me deliciar observando-o sem acanhamento e não cansava disto. Minha pintura evoluía muito, mas estava ainda insatisfeita. Por mais que tentasse não conseguia transpor para a tela toda beleza daquele homem-anjo.

Quando o sol ficava muito quente voltava para casa enquanto ele ia trabalhar. Não me falava muito, aliás, quase nada, sobre seu trabalho, o que não me incomodava. Embora tivesse certa curiosidade, estava tão feliz com os momentos que tínhamos que não queria desperdiçar com algo que não o agradava. Eu o queria alegre, porque quando sorria meu coração quase parava de tanto prazer.

Invariavelmente ao voltar para a cabana ela estava limpa e arrumada, as roupas sujas tinham sumido e as que tinham sumido dias antes estavam lavadas, passadas e arrumadas no guarda-roupas. Não importava o quão hermeticamente tivesse fechado ao sair, Tana sempre conseguia entrar. Pedi-lhe milhões de vezes para parar de fazer as minhas tarefas. Ela sempre balançava a cabeça concordando e no outro dia fazia tudo igual. Nós discutimos feio ontem. Disse o quanto me desagradava, que me fazia sentir uma inútil e exploradora da boa vontade alheia. Tana chorou e falou, falou, falou. Ao final além de inútil e exploradora, era também uma malvada desumana que negava a uma velha e pobre criatura o prazer de cuidar de sua menina.

Tana adotara-me como antes tinha adotado Adriel. Éramos seu menino e sua menina e tratava-nos como a duas crianças, dando ordens, conduzindo e organizando nossas vidas com regras e horários. Adriel parecia divertido ao ver-me tentando desobedecer a algumas destas regras. Disse que já tinha desistido há anos e que Tana era impossível, nunca aceitando um “Não” como resposta e contou-me que a grande frustração dela era não ter tido filhos e que só a faria feliz aceitando seu carinho. Acabei desistindo de dar murros em ponta de faca e relaxei, deixando-a mimar-me e cuidar-me como se fosse mesmo sua filha.

Após o almoço, se Adriel estivesse livre, ficávamos um pouco na praia e o restante do tempo em sua casa. Mesmo quando ele estava trabalhando eu ficava por lá. Aboletava-me na Mole, que já considerava minha e lia os diários de meu pai.

Estava conseguindo ler cerca de um por dia. Nos três primeiros não havia muita coisa a ser dita. Ele estava obcecado pela luz de Portal e por uma nova técnica de pintura e seu assunto quase sempre era este, com observações sobre estudos, pintura, horários, etc...

No quarto livro narra um acidente quando estava visitando uma área nova e cai em uma depressão da terra que não havia percebido. Machucado e com o pé quebrado ou torcido, não consegue sair sozinho. Começa a chamar por socorro sem esperanças, por saber que o local não é habitado, mas uma jovem aparece e o ajuda a sair e a retornar para a cabana.

O quinto livro é todo dedicado a ela, que o ajuda a comer e se manter enquanto não pode andar. Embora vá embora aos finais de cada tarde, retorna cedo na manhã seguinte e passa os dias com ele. Meu pai está absurdamente apaixonado e mesmo recuperado finge não estar com receio de que ela pare de visitá-lo. Segundo seus relatos, a moça é belíssima. E pela descrição não tenho dúvidas de que era minha mãe.

No sexto livro, meu pai se consome de angústia, por ainda não saber quem ela é e por estar perdidamente apaixonado. Minha mãe corresponde, mas existe um impedimento para ficarem juntos: ela é comprometida com outra pessoa e meu pai não entende o que a impede de romper este compromisso, já que o ama tanto quanto ele a ama.

No sétimo livro, que acabei de ler hoje, eles passam as tardes se amando na cabana. Ainda assim ela insiste não poder desfazer seu noivado com o outro e não revela a meu pai nada mais. Ele não sabe onde mora e nem mesmo com quem vive. Aparentemente é uma jovem rica, pelo vestuário e modos sempre impecáveis. Mamãe não quer contar mais sobre sua vida e diz que não pode romper por ser um compromisso moral e que deve se casar não apenas por sua família como por seu povo. Papai não entende e não aceita. Tem ciúmes do noivo que sequer conhece. Quer se casar com mamãe e a levar para outra cidade, distante deste rival invisível e poderoso. Mamãe se recusa. Eles brigam feio e ela vai embora dizendo que não voltará.

Estou agônica para ler o oitavo livro e saber o que acontece depois, mas hoje não será possível. Estamos quase no final da tarde e preparamos uma surpresa para Adriel. Ele saiu cedo para algum trabalho que tinha que fazer em outra cidade. Vamos ter uma noite romântica com jantar à luz de velas. Foi idéia de Tana, cúmplice e parceira no projeto de sedução de Adriel.

Ele e eu encaixamos um no outro perfeitamente. É como se tivesse sempre feito parte de mim, como se já estivesse ali dentro desde sempre. Penso que para ele é igual, porque também me vejo encaixada nele de forma natural. Não temos resistência para a entrada do outro. Não é como se fôssemos um, porque somos diferentes. Nem como se fôssemos duas metades que se completam, porque isto seria dizer que somos incompletos sem o outro e não é verdade. É apenas que somos melhores e mais felizes juntos.

Nunca pareceu estranho a rapidez com que nos envolvemos. Estranho é como vejo minha vida anterior, sem ele. Felizmente antes não sabia como poderia ser melhor ou não teria conseguido viver todos estes anos. Espero apenas nunca mais ter que viver sem ele. Não creio que seria possível.

Nas poucas horas em que nos distanciamos um do outro, fico agitada e tensa e parece que a vida fica em pausa até que estejamos juntos novamente e só então ela recomeça a acontecer.

Não tenho dúvidas de que Adriel sente o mesmo por mim. Vejo no seu olhar, nos seus gestos, na forma como está sempre me buscando e tocando ou como seu rosto se ilumina quando nos reencontramos após cada separação, mesmo que mínima.

Apesar desta certeza e de estar sempre me tocando, com os mais variados pretextos, nunca me beijou. Ele nem sequer me abraça realmente, como desejo que abrace. Impõe entre nós um distanciamento físico, uma impossibilidade de um toque mais demorado e intenso e nem sei por que.

Não que seja a mulher mais experiente do mundo, mas sou bem informada o suficiente para saber o que papai e mamãe fizeram para que eu viesse ao mundo. Além disto, tive alguns namoricos na escola e faculdade. Bom, alguns não. Dois para ser sincera. Não passamos do primeiro beijo e isto porque senti nojo em ambos os beijos, mas tenho certeza de que com ele seria diferente, delicioso e mágico. Daria tudo por um beijo de Adriel.


Li uma vez que quando estamos amando tocar o corpo do outro é uma forma de tocar a alma do ser amado e é isto que quero experimentar. Quero amar a alma de Adriel através de seu corpo. Quero que ele sinta o quanto é adorado e venerado através de meus carinhos e beijos e quero que ele me ame da mesma forma. Saber que me ama não é suficiente. Quero sentir seu afeto me tocando, saindo dele e entrando em mim, o mesmo tanto que quero que saia de mim e entre dentro dele e ali permaneça. É uma vontade de posse, misturada com um desejo de estar no outro de uma forma mais permanente ou mais física, não sei bem.

Este desejo é novo para mim. Quando lia romances fantasiava sobre como seria, mas não imaginava que fosse tão desesperador e imperativo como é. Esta ânsia, esta vontade enlouquecedora que me invade em qualquer hora do dia, que me faz sonhar com ele todas as noites e acordar sem fôlego, que me deixa com a boca seca, com o estômago em ruínas e as pernas adormecidas quando estou ao seu lado, perto demais e penso que bastaria um movimento para o tocar como gostaria, apesar de ainda não ter tido coragem suficiente.

É por isto que Tana e eu armamos este jantar. Ela me presenteou com um vestido inacreditavelmente lindo, feito de uma seda muito fina e delicada, azul praticamente da mesma cor de meus olhos. Romântico e sensual demais, embora aparentemente seja singelo e inofensivo, Ele nem vai saber o que exatamente o atingiu e antes mesmo de perceber estará me beijando.

Esta noite Adriel será meu.


Texto registrado no Literar.


Imagem: casa de Adriel encontrada aqui.


Sérgio Rodrigues (1927), é carioca. Arquiteto, tornou-se um grande designer de móveis e foi pioneiro em tornar o design nacional conhecido mundialmente com uma linguagem própria e bem brasileira. Sua Poltrona Mole ganhou o primeiro lugar no Concurso Internacional do Móvel em 1 964.

Os Irmãos Campanas são uma referência do design brasileiro, têm móveis expostos no MoMa, utilizam em seus móveis materiais pouco comuns estimulando a reciclagem e suas peças sempre remetem às origens brasileiras.



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